quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

Doutrina Político-Poética para a Salvação Nacional

A el-Rei D. João 

Rei de muitos reis, se um dia,
se uma hora só, mal me atrevo
ocupar-vos, mal faria,
e ao bem comum não teria
os respeitos que ter devo;

Que em outras partes da Esfera,
em outros céus diferentes,
que Deus té'gora escondera,
cada uma de tantas gentes
vossos mandados espera.

Porque, Senhor, eles sós 
(justo e poderoso Rei!)
desdão ou lhe cortam nós,
como também entre nós
que sois nossa viva lei.

Onde há homens há cobiça;
cá e lá tudo ela empeça,
se a santa, igual justiça
não corta, ou não desempeça
o que a má malícia enliça.

Senhor, qu'é muito atrevida!
E onde ela nós cegos deu,
cortar é coisa devida;
exemplo, o justo de Mida, 
que el-Rei vosso avô fez seu.

Ora eu que, respeito havendo
ao tempo mais que ao estilo,
irei fugindo ao que entendo;
farei como os cães do Nilo,
que correm e vão bebendo.

A dignidade real,
que tem o mundo a direito, 
(sem ela ter-se-ia mal) 
é sagrada, é natural
deixemos medo e proveito.

As vossas velas, que vão 
dando quase ao mundo volta,
raramente contarão
gente de algum rei solta:
sem cabeça o corpo é vão.

Dignidade alta e suprema,
que há que a não reconheça?
Viu-se em Marco António tema
de a César pôr diadema
real sobre a cabeça.

Que nome de emperador
d'antes a César se dera,
sem suspeita e sem temor;
que inda então muito mais era
ser cônsul, ser ditador.

Um rei ao reino convém; 
vemos que alumia o mundo;
um sol, um Deus o sustém;
certa a queda e a fim tem
o reino onde há rei segundo.

Não, ao sabor das orelhas,
arenga cuidada e branda;
abastem as razões velhas:
a cabeça os membros manda;
seu rei seguem as abelhas.

A seu tempo o rei perdoa;
a tempo o ferro é mezinha:
forças e condição boa
deram ao leão coroa
de sua grei montesinha.

Às aves, tamanho bando, 
doutra liga e doutra lei, 
por vencer todas voando, 
a águia foi dada por rei,
que o sol claro atura olhando.

Quanto que sempre guardou
David lealdade e fé
a Saul! Quanto o chorou!
Quanta maldição lançou
aos montes de Gelboé!

Onde caíra o escudo
de seu rei, inda que imigo,
inda que já mal sesudo
saindo de tal perigo,
e subindo a mandar tudo.

O senhor da natureza,
de que o céu e a terra é cheia,
vestindo em nossa baixeza,
de real sangue se preza:
por rei na cruz se nomeia.

Sobre obrigações tamanhas
velem-se com tudo os reis
dos rostos falsos, das manhas
com que lhes fazem das leis,
fracas teias das aranhas.

Oue se não pode fazer
por arte, por força ou graça,
salvo o que a justiça quer.
Senhor, não chamam poder
salvo o que lhes val na praça.

E por muito que os reis olhem
vão por fora mil inchaços,
que ante vós, Senhor, se encolhem
duns gigantes de cem braços
com que dão e com que tolhem.

Quem graça ante o rei alcança,
e i fala o que não deve,
(mal grande da má privança)
peçonha na fonte lança,
de que toda a terra beve.

Quem joga onde engano vai
em vão corre e torna atrás,
em vão sobre a face cai;
mal hajam as graças más
de que tanto dano sai!

Homem de um só parecer,
dum só rosto e duma fé,
d'antes quebrar que volver,
outra cousa pode ser,
mas de corte homem não é.

Ouço gracejar, de cá,
de quem vai inteiro e são,
nem se contrafaz mais lá:
- Como este vem aldeão,
que não sabe onde se está!

As públicas santidades,
estes rostos transportado,
não em ermos, mas cidades,
para Deus são vaidades,
para nós vão rebuçados.

Mas, despois, que lhes fazemos?
Pode ser, não pode ser,
adiante o saberemos:
estamos um pouco a ver;
cai-lhes o rebuço, e vemos.

Senhor, hei-vos de falar 
(vossa mansidão m'esforça) 
claro o que posso alcançar; 
andam pera vos tomar
por manha, que não por força.

Por minas trazem suas azes,
encobertos seus assanhos,
falsas guerras, falsas pazes:
de fora são mansos anhos,
de dentro lobos robazes.

Tudo sua cura tem:
que é assi, bem o sabeis
e o remédio também.
Querei-los conhecer bem?
No fruito os conhecereis.

Obras, que palavras não!
Porém, Senhor, somos muitos;
e entre tanta abrigação,
tresmalham-se-vos os fruitos,
que não sabeis cujos são.

Um, que por outro se vende,
lança a pedra, e a mão esconde;
o dano longe se estende;
aquele a quem dói, entende,
com sós suspiros responde.

A vida desaparece,
e entretanto geme e jaz
o que caiu; e acontece
que dum mal que se lhe faz,
outro mor se lhe recresce.

Pena e galardão igual 
o mundo em peso sustém, 
é ma regra geral:
que a pena se deve ao mal, 
o galardão ao bem.

Se alguma hora aconteceu
na paz, muito mais na guerra,
que a balança mais pendeu,
faz-se engano às leis da terra;
nunca se faz às do Céu.

Antre os Lombardos havia
lei escrita e lei usada,
como inda hoje, parecia:
que onde a prova falecia
que o provasse a espada.

Ali no campo, às singelas,
em fim, morrer ou vencer,
fosse qual quisesse delas,
não era milhor morrer
a ferro que de cautelas?

A um nosso alto rei excelente,
Dom Dinis, tão louvado,
tão justo, a Deus tão temente,
falsa e maliciosamente,
foi grande aleive assacado.

Ele posto em tal perigo,
(rei que rei fez e desfez!)
co'as manhas do falso imigo,
foi-lhe forçado essa vez
à lei chamar-se que digo.

E às vilas e às cidades,
a que cumpriu d'acudir,
pelas suas lealdades:
tanto são más as verdades
às vezes de descobrir!

Da mesma casa real
em verdade um grande infante
tratado por manhas mal,
bradava por campo igual,
e imigos claros diante.

Em fim, vendo a indústria e arte
quanto que podem, chamou
um leal conde a de parte;
só com ele se apartou;
foi viver à milhor parte.

Onde tudo é certo e claro,
onde são sempre umas leis;
Príncipe no mundo raro!
Sobre tanto desamparo
foram três seus filhos reis.

Ó Senhor, quantos suores
passa o corpo e a alma em vão
em poder de envolvedores!
E, em fim, batalhas que são
salvo uns desafios mores?

Co'a mão sobre um ouvido
ouvia Alexandre as partes,
como quem tinha entendido,
por fazer certo o fingido,
quantas que se buscam d'artes.

Guardava ele aquele inteiro
para a parte não não ouvida;
não vá nada em ser primeiro;
quem muito sabe duvida;
só Deus é o verdadeiro.

A tudo dão novas cores,
envolvendo os peitos puros,
e falam sempre em primores.
Ante os reis, vossos senhores,
vindes com rostos seguros.

Contais, gabais, estendeis
serviços e lealdade.
Olhai, que a não daneis: 
falai em tudo verdade
a quem em tudo a deveis.

Senhor, nosso padre Adão
pecou; chama-o o Juiz.
Tenha que dizer ou não
i sua fraca razão,
porém livremente diz.

Sempre foi, sempre há de ser,
onde uma só parte fala,
sempr'a outra haja de gemer.
Se um jogo todos iguala,
as leis que devem fazer?

Vidas e honras tomais
debaixo de vosso amparo,
de estranhos e naturais;
suspiram, não podem mais,
e às vezes isto mal claro.

Também trás aquela arde
tão estimada a fazenda,
por mais que se vele e guarde;
tinha ela milhor emenda,
se não fosse mal, e tarde.

Geralmente é presumptuosa 
Espanha, e disso se preza: 
gente ousada e belicosa; 
culpam-na de cobiçosa, 
tudo sabe Vossa Alteza.

Pensamentos nunca cheios,
não têm fundo aqueles sacos!
Ainda mal com tantos meios,
para viver dos mais fracos
e dos suores alheios.

Que eu vejo nos povoados 
muitos dos salteadores,
com nome e rosto d'honrados:
vão quentes, andam forrados
de peles de lavradores.

E, Senhor, não me creais,
se as não acham mais finas
que as dos lobos cervais,
que arminhos e zebelinas,
custam menos, cobrem mais.

Ah, Senhor, que vos direi?
Que acode mais vento às velas.
Nunca se descuide o Rei:
que inda não é feita a lei, 
já se lhe buscam cautelas.

Então, tristes das mulheres,
tristes dos órfãos coitados,
e a pobreza dos mesteres,
que nem falar são ousados
diante os mores poderes.

Os quais quem os assim quer,
quem os negocia assi?
Que fará dês que os houver?
nossos houveram de ser,
buscaram-nos para si.

Ora, já que as consciências
o tempo as levou consigo,
venhamos às penitências,
Senhor, se eu visse castigo...
Boas são as residências;

Mas eu vejo cá na aldeia,
nos enterros abastados,
quanto padre que passeia,
enfim, ventre e bolsa cheia
e assoltos de seus pecados.

Se querem reconciliar
uns cos outros, tem seu trato;
abasta-lhes só acenar:
não nos fazem tal barato
ò tempo de confessar.

Senhor, esta vossa vara
como as mãos em que anda é;
a boa é ave mui rara;
crede que esta nunca é cara,
que seja muita a mercê.

Livre de toda a cobiça,
a Deus temente e a vós,
sem respeito, sem preguiça,
varas direitas, sem nós,
se quereis que haja i justiça!

Tomai, Senhor, o conselho
do bom Jetro ao genro amigo: 
é verdade, é Evangelho; 
como disse aquele velho, 
humildemente assi vos digo.

Que estas leis justinianas,
se não há quem as bem reja
fora de paixões humanas,
são um campo de peleja
com razões francas e ufanas.

Morre o nobre Conradino
co parceiro, em todo igual,
cada um de tal morte indino,
porque o duro, ou o malino
doutor interpreta mal.

Diz Agostinho sãmente: 
Cesse o sangue; a guerra finda;
diz mais, dalguns maiormente;
vem grosas, que corre ainda
o real sangue inocente.

Mas, Senhor, milhor o temos:
sendo vós o que mandais,
todos nos revolveremos,
os que tanto não podemos,
e aqueles que podem mais.

Quem por amor se encadeia, 
não é nome errado ou novo 
se por livre se nomeia;
não tem rei amor de povo 
rei em quanto o mar rodeia.

Não assoberbam soldados
aqui, nem soa atambor;
os outros reis seus estados
guardam de armas rodeados,
vós rodeado de amor.

Achar-nos-ão as divinas,
no meio dos corações,
esculpidas vossas quinas;
estas são as guarnições
de vós e dos vossos dinas.

É sem dúvida o francês 
a seu rei amor aceso:
não lho nega o português; 
traz porém guarda escocês, 
que não é de pouco peso.

O Padre Santo assi faz,
a quem certo se devia
alto assossego, alta paz;
e guardas todavia,
com que vai seguro e jaz.

Que se pode ir mais avante,
co's olhos, nem co sentido?
Sem ferro e fogo que espante,
com duas canas diante
is amado e is temido.

Uns sobre os outros corremos,
a morrer por vós com gosto;
grandes testemunhas temos
com que mãos e com que rosto
por Deus e por vós morremos.

Outrossi para os reveses
(queira Deus que não releve!)
em vós tem os portugueses
Codro dos atenienses,
Décios, que só Roma teve.

Do vosso nome um grão rei 
neste reino lusitano,
se pôs essa mesma lei, 
que diz o seu Pelicano: 
Pola Lei e Pola Grei.

Mas eu sou um guarda-cabras
vão-se assi de ponto em ponto;
queria só duas palavras:
que dos gados e das lavras
despois não tem fim nem conto.

Assim que seja aqui a fim:
tornem as práticas vivas;
perdestes meia hora em mim,
das que chamam sucessivas
estes que sabem latim.

Sá de Miranda

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"(...) as leis não têm força contra os hábitos da nação; (...) só dos anos pode esperar-se o verdadeiro remédio, não se perdendo um instante em vigiar pela educação pública; porque, para mudar os costumes e os hábitos de uma nação, é necessário formar em certo modo uma nova geração, e inspirar-lhe novos princípios." - José Acúrsio das Neves