quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Contos de fadas

Poucas civilizações investiram tantos esforços e meios num frenesim auto-destrutivo como a nossa. A institucionalização dos aborrecidos do universo, dos mais chatos da história, nas faculdades de psicologia, sociologia, antropologia e outras que mais, proporcionou ao Homem carradas de chatice teórica empenhada a realizar, em enjoativo tempo-útil, o fim diabólico de nos tornar qualquer coisa que não Homens. A capacidade de sonhar, o dom mais generoso que nos foi entregue pela Sua ilimitada generosidade, está hoje reduzida, controlada e regulada (the nerve on this people!) pelo maior inimigo da humanidade: o Homem que não Acredita em Contos de Fadas.
A timidez da criança, ou a sua selvajaria, são inteiramente racionais; ela está alarmada ante este mundo, visto ser o mundo um lugar sumamente alarmante. Desagrada-lhe estar sozinha, porque estar só é uma ideia aterradora. Os bárbaros temem o desconhecido pela mesma razão que os agnósticos o adoram - porque é um facto. Os contos de fadas não são, por isso, responsáveis pela produção nas crianças de qualquer forma de medo; os contos de fadas não dão às crianças a ideia do mal nem do feio: essas ideias já estão na criança, uma vez que também já estão no mundo. Os contos de fadas não dão às crianças a ideia de fantasma. O que os contos de fadas dão à criança é a sua primeira ideia clara da possível vitória sobre o fantasma. O bebé conhece intimamente o dragão, desde que tem imaginação. O que os contos de fadas lhe proporcionam é um São Jorge capaz de matar esse dragão. O que os contos fazem é exactamente isto: acostumam a criança, por uma série de claras representações pictóricas, à ideia de que esses terrores ilimitados têm limites; de que esses inimigos infinitos do homem têm inimigos nos cavaleiros de Deus; de que existe algo no universo mais místico do que as trevas e mais forte do que o medo avassalador. Quando eu era criança, observei fixamente a escuridão, até que a enorme massa negra se converteu num gigante negro mais alto que o firmamento. Se existisse uma estrela no céu, só serviria para o transformar em ciclope. Os contos de fadas restauraram, contudo, a minha sanidade mental; é que no dia seguinte, li um relato autêntico de como um gigante negro só com um olho, exactamente das mesmas dimensões, havia sido derrotado por um rapazinho pequeno como eu (com uma inexperiência símile e de um estrato social ainda mais baixo), somente usando uma espada, algumas más adivinhas e um coração valente. O mar, à noite, parecia-me tão temeroso como qualquer dragão. Mas logo conhecia imensos "filhos mais novos" e "pequenos alfaiates" para os quais um par de dragões era algo tão simples como o mar.
Leia o mais horrível dos contos de Grimm quanto a incidentes e imagética, o excelente conto "O rapaz sem medo", e verá o que quero dizer. Nesse conto há alguns choques impressionantes. Recordo-me especialmente das pernas de um homem que caíram por uma chaminé abaixo e começaram a andar pela sala, até que se reuniram à cabeça e ao corpo separados delas, que caíram, posteriormente, pela mesma chaminé. Isso é muito bom. Porém, o busílis da história e centro dos sentimentos do leitor não é que estas coisas sejam aterradoras, mas o facto muito mais impressionante de o herói não sentir medo disso. A mais terrífica de todas aquelas maravilhas aterradoras era a sua própria ausência de medo. Dava palmadinhas nas costas aos fantasmas e convidava os demónios a beber vinho com ele. Muitas vezes, na minha juventude, quando uma morbilidade moderna me agitava, rezava por uma cópia do seu espírito. Se ainda não leu o final desse conto, vá e leia-o: é a coisa mais sábia do mundo. O herói aprende finalmente a estremecer, ao tomar uma esposa que lhe atira para cima um balde de água fria. Nessa única frase há mais conteúdo acerca do significado do matrimónio do que em todos os livros sobre sexo que cobrem a Europa e a América.
G. K. Chesterton, Tremendas Trivialidades

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"(...) as leis não têm força contra os hábitos da nação; (...) só dos anos pode esperar-se o verdadeiro remédio, não se perdendo um instante em vigiar pela educação pública; porque, para mudar os costumes e os hábitos de uma nação, é necessário formar em certo modo uma nova geração, e inspirar-lhe novos princípios." - José Acúrsio das Neves